"Eu quero um pacto com a simplicidade. Limpar os desejos ocultos. Eu quero ser analfabeta das miudezas, dos disse-que-disse. Meus bolsos, meus bolsos se desfazem das pedras de uma vida inteira carregadas pro vôo das jóias."

Maísa Picasso

23.6.07

Magia de verdade foi da primeira vez em que lembro que ganhei um livro. Nas vésperas de ler, ganhei uma coleção inteira de histórias clássicas, numa versão mal-arranjada pra crianças. Capa-dura, cores vivas, ilustrações riquíssimas ambientando as tramas.
Ô se lembro do dia em que ganhei. Era meu aniversário dos seis anos, me vestiram num conjuntinho de gosto duvidoso de saia balonê branca, blusa combinando e suspensórios pra descombinar a zorra toda. E meus aniversários eram históricos. Mainha planejava por meses. De doces, barulho, brincadeiras e meninos "endiabrados". Lembro que os livros vinham com fita k7 com a história contada. E eu decorava inteira as pausas, os sussuros, as reticências.
Dia desses encontrei minha professora da primeira série, pró Janete. Ela me reconheceu embora eu custasse por me dar conta. Você é a Maísa. Não se lembra de mim? Continua doce, menina. Custei de novo, mas já arranjada por meia dúzias de lágrimas à-toas. Você sempre gostou de histórias. Uma verdade, eu pensei. Me pedia pra ler e decorava inteira todos os tons. Eu fazia isso, era verdade, em tons variados e dramáticos, pros meus pequenos anos. Repetia sorvendo de olhos fechados ponto por ponto, cada roçar de dedo na folha...
Discretos tons depois, passava pouco maldizendo meu passado declamativo: síndrome da finitude da trama. Escolhia a dedo a próxima história, cumpria todos os ritos. O livro na cabeceira, nas mãos, na bolsa, no ônibus. E não adiantava. Um livro, quanto mais clássico fosse mais ligeiro o abandonava. Feito os amantes que rompem por se darem conta que já são dois. Eu os abandonava à poeira e vento, malmente um clássico no rádio. Nem uma folheada, rasuras, dobra de orelha, nada.
Mas dizem que maldição eterna mesmo só por feitiço de amor e guerra. E não era este o caso. A não ser que não soubesse que ex-amante paga macumba por vingança de ser deixado: "nunca mais lerá livro algum, maldita". Mas nem por imaginação qualquer ouvi dizer tanto absurdo. Então era quimera pura. E a maldição continuava. Continuava disse bem. Por mágica, pura e simples, terminei um. Unzinho até o último ponto, letra, sopro autoral. E comecei outro e depois outro e mais um. E fico aqui deliciada por estar só e ao mesmo tempo acompanhada, vendo meus tempos todos pausarem pra minha chegada, numa rede tão baiana quanto possa.

10 comentários:

Anônimo disse...

Que texto lindo, meu amor. Deixou um pouquinho o hermetismo de ser Maísa pra ser generosa com o amor pela literatura... simplesmente delicioso.

Júlia disse...

Mai, que lindo! Lembrei do meu livrinho de história que adorava e também ganhei em um aniversário, só que de um coleguinha... Até hoje meus livros de criança estão na casa de minha mãe... Mas este, como é especialíssimo, trouxe comigo para o Rio. É um livro de contos de fadas, de capa dura verde-água e ilustrações lindas e delicadas... Quantas horas eu passei debruçada nele e maravilhada com a Cinderela que tinha longos cabelos castanhos. Quanta ternura! Beijinhos carinhosos pra você lindinha :*

Anônimo disse...

Dos 6 aos 9 anos as minhas fantasias eram coloridas pelas histórias que lia na coleção de Malba Tahan. Eu adorava. Não entendia por que ele chamava Deus de Allah, de resto tudo me encantava. :)
Beijo grande, Mai.
P.S.: gostoso ler a palavra mainha no texto. Me senti menos só em "sotaque" nesta blogosfera. ;)

Lidiane disse...

Ow, Mai.

Que texto mais doce.
Que coisa mais pura e cheia de nostalgia.
Tão lindo...
Ó, há uns cinco anos vi minha professora do primário e fiquei como você.
Foi bom voltar a escola em que estudei.
Tanta coisa passou na minha cabeça, tanta coisa...

Beijo com carinho pra minha cunhadinha linda.

Amanda Julieta disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Saudade danada desta aniversariante que escreve uma coisa mais lnda do que a outra...
Lembrei de mim, Mai, já aos quatro anos "perdida", encontrada num canto da casa fria a soletrar algum livrinho...
Estou adorando a fase de textos, lindos!
Ah, muita felicidade e poesia na sua vida, viu??
Mil beijos saudosos!

Antonio Junior disse...

O livro é um convite à própria liberdade, pode-se ser qualquer coisa diante do almálgama de letras compondo o amor, o ódio, a raiva, o sexo, a dor, o universo. Há braços!


Antônio Alves
No Passeio Público
Postagens às quartas e domingos

Anônimo disse...

sabe, hj li uma entrevista do Suassuna , Salve! Salve!, onde ele diza que não gostava de livros, mas que tinha uma Paixão por livros. Enchi os olhos de água e o coração de uma sede danada de ler. Ler teus textos me dá sempre sensação de alívio, leveza, molecagem. Parabéns minha linda e a todos nós, amantes que somos desses bichinhos grudentos e maravilhosos!

TIAGO SÂNZIO disse...

Parabéns pelo blog! Navegando por ai, caí sem querer por aqui! Gostei muito dos textos!

saudações!

Anônimo disse...

Em alto-mar? Nenhuma palavrinha? :)
Beijo, Mai.