"Eu quero um pacto com a simplicidade. Limpar os desejos ocultos. Eu quero ser analfabeta das miudezas, dos disse-que-disse. Meus bolsos, meus bolsos se desfazem das pedras de uma vida inteira carregadas pro vôo das jóias."

Maísa Picasso

31.3.10

Magia de verdade foi da primeira vez em que lembro que ganhei um livro. Nas vésperas de ler, ganhei uma coleção inteira de histórias clássicas, numa versão mal-arranjada pra crianças. Capa-dura, cores vivas, ilustrações riquíssimas ambientando as tramas.

Ô se lembro do dia em que ganhei. Era meu aniversário dos seis anos, me vestiram num conjuntinho de gosto duvidoso de saia balonê branca, blusa combinando e suspensórios pra descombinar a zorra toda. E meus aniversários eram históricos. Mainha planejava por meses. De doces, barulho, brincadeiras e meninos "endiabrados". Lembro que os livros vinham com fita k7 com a história contada. E eu decorava inteira as pausas, os sussuros, as reticências.

Dia desses encontrei minha professora da primeira série, pró Janete. Ela me reconheceu embora eu custasse por me dar conta. Você é a Maísa. Não se lembra de mim? Continua doce, menina. Custei de novo, mas já arranjada por meia dúzias de lágrimas à-toas. Você sempre gostou de histórias. Uma verdade, eu pensei. Me pedia pra ler e decorava inteira todos os tons. Eu fazia isso, era verdade, em tons variados e dramáticos, pros meus pequenos anos. Repetia sorvendo de olhos fechados ponto por ponto, cada roçar de dedo na folha...

Discretos tons depois, passava pouco maldizendo meu passado declamativo: síndrome da finitude da trama. Escolhia a dedo a próxima história, cumpria todos os ritos. O livro na cabeceira, nas mãos, na bolsa, no ônibus. E não adiantava. Um livro, quanto mais clássico fosse mais ligeiro o abandonava. Feito os amantes que rompem por se darem conta que já são dois. Eu os abandonava à poeira e vento, malmente um clássico no rádio. Nem uma folheada, rasuras, dobra de orelha, nada.

Mas dizem que maldição eterna mesmo só por feitiço de amor e guerra. E não era este o caso. A não ser que não soubesse que ex-amante paga macumba por vingança de ser deixado: "nunca mais lerá livro algum, maldita". Mas nem por imaginação qualquer ouvi dizer tanto absurdo. Então era quimera pura. E a maldição continuava. Continuava disse bem. Por mágica, pura e simples, terminei um. Unzinho até o último ponto, letra, sopro autoral. E comecei outro e depois outro e mais um. E fico aqui deliciada por estar só e ao mesmo tempo acompanhada, vendo meus tempos todos pausarem pra minha chegada, numa rede tão baiana quanto possa.

7 comentários:

Unknown disse...

Rapaz, eu me lembro quando meu pai comprava as historinhas classicas do tipo: tres porquinhos, bela adormecida, joãozinho e maria... todas em K7. Me lembro que eu ficava no carro do meu pai, sozinha na garagem, ouvindo as histórias repetidamente...era uma onda!
E tinha uma trilha sonora q eu adorava, de drama, romance, suspence e uma narração bizarra, sempre com uma mulher com voz doce narrando, mas eu achava o máximo.
kkkkkkk
Bons tempos!!

Maísa Picasso disse...

hahahaha, que legal, Giss!

Pablo Carvalho disse...

Lindo texto, pequena, lindo!

Lembro que a paixão pelos livros foi uma das primeiras coisas que nos aproximaram.

Lembro irmos juntos para o Jardim dos Namorados ler trechos de livros que amávamos um para o outro, enquanto todos os outros casais deixavam de lado poesia e prosa e partiam para a prática.

Lembro de te telefonar de madrugada para ler um texto de Clarice, só porque você disse que adorava.

Lembro de comprar trocentos livros com você na Saraiva e não terminar nenhum, vítima da mesma maldição que te atacava.

Lembro das nossas estantes abarrotadas de bons livros, lembro da devassa doloridíssima que promovemos neles para ganhar espaço.

As duas estantes agora são uma, os trocentos livros agora são menos.

Mas eu, com você, meu amor, sou muito, muito mais que um.

Maísa Picasso disse...

aiai que fofo, menino.

Amanda Julieta disse...

Mai, lembrei muito de um texto que fiz há uns tempos, sobre um livro que meu pai me deu quando eu tinha quatro anos. Eu soletrei a capa: "Clá-rí-cê... Lís... Lis o quê, paiê?".
(pois pois, senhora, meu pai me deu Clarice quando eu tinha quatro anos e acabava de aprender a ler)
Tem umas coisas bonitas que marcam mesmo nossas vidas.
Adorei seu texto, é uma delícia!

Beijos,

Julia disse...

Que riqueza de texto menina! Posso ilustrar ele? eheheh
Imaginei vc de sainha balonê!!! hahaha
que amooooooooor! vc é um amor!!!

beijocas :*
Juju

Marta Moreira disse...

Ai, Mai!
às lágrimas...a saudade me faz assim.
Lindo demais. Imaginei você e lembrei dos aniversários. Tão queridos, tão saudosos.
Amo você.
Com muita saudade.