
Sita tinha um peso grande das coisas. Tudo para ela causava um estranhamento quase convencional. O absurdo previsível na cor escura do mundo que ela pintava. A vida exigia esforço, sacrifício ponderado. Trabalho de Hércules. Amanhecia assim, esquecida, só havia sombra e luta. Todo dia, batalhas íntimas. Absorta, entregue. Sita seguia em esforços e mágoas. Viver era um grande óbulo, mesquinhez do destino que a fizera assim tão vulgar, tão previsível. Sita fingia que vivia. Existia inalcançável entre paredes de pensamentos. E andava a passos miúdos e mesmo com pressa que tinha da vida. E as coisas para ela não causavam assim admiração, nem encantamento, eram nuas, como rua desprovida de calçamento, rua-paralelepípedo, sinuosa. E seguia como que existia sem alinhamento, sem rótulo, esvaída.
Às vezes, na hora da tarde, quando toda a sua vida se esgotava e todas as tarefas cumpridas, era obrigada a mergulhar atônita no vazio de si. Mal cabendo inventava preocupação, passava horas. Da tinta da parede. Da gata do vizinho. Do jornal atiçado no jardim molhado, páginas amareladas, como a imprimir leveza. E quando mesmo assim escondia, havia hora de passar consigo, assustadoras. Enganar tentava. Não cabia.
Mas Sita existia.
Naquele dia, como por encanto, algo diferente aportava nela. Levantava como de toda manhã. Era domingo. Havia muito a ser feito. Certamente levantaria de pronto. Mas foi-se deixando ficar. Inventou estórias. Catou conchas. Ouviu marulhar. E mesmo quando não mais tinha a fazer ficou estendida no vácuo, na ausência de idéias. E a vida para ela passou a ter identificação. Quem inventara a lei do esforço? Que absurdo no homem causara a idéia de que viver era pra ser em pedras espaçadas, largas no meio? E que das curvas pra fora da estrada, o rio exigia esforço? Não, não era cansaço apenas. Era a hibernação de um sentimento, uma idéia. Da sua vida com novo olhar, sem exigências ou peso. Levantou-se leve. Sentou-se diante de si no espelho e o que agora enxergava era distante do que sempre via. Aquela a quem sempre se acostumou em chamar de Sita, de si mesmo, estava tão longe do que de fato era. Uma lembrança pálida da História.
Penteou os cabelos longos com as mãos e a sensação boa, quase como se brisa fizesse festa desfiando fio a fio de si, erguendo em dança clássica os cabelos ao vento. Teve vontade de erguer o véu, mas preferiu dançar. De longe, o sol se ia anunciando o dia. E o barulho da cidade atenta já se fazia ouvir distante. E Sita em versos de si, olhava-se. E o que não era mais de se estranhar é que cada vez que se enxergava via-se menos a imagem refletida. Somente ela sobrevivia desse embate. Esfinge argüia segredos mágicos. As respostas dantes ocultas, agora soçobram na língua, feito barco quando da chegada desliza em esperanças espaçosas.
E se ria menina da mulher renascida. Se ria. A imagem de si que se formara no espelho se diluía em pasta transparente escorrendo no vazio. E em pouco nada mais havia. Na mais completa cegueira, sem imagens refletidas, somente a si, exata, pontual.
Ao convite da luz através da janela, um dia inteiro se passara e o sol se recolhia instaurando o tempo. E Sita ainda sentada diante do espelho. Não mais carecia de se procurar. Nem de se ver. Já trazia no olhar o vasto mundo. A certeza de que viver exigia tons pastéis e cores claras. Mesmo se anunciem tempestades. Mesmo se ensinem a lutar consigo pra ganhar a vida. Guerras diárias pra institucionalizar paz interna. Pensava que pensava no seu canto. E viver para ela deixava de ser pena que se paga por não ser boa. Não exigia dor ou esforço. Cabia amar-se apenas. Sim, Sita existia.
Mai*
2 comentários:
Ser feliz é dar-se conta. Existir não é ser. E Sita aprendeu a diferença... que amar não é um fim, é um exercício e um caminho. Para onde leva, a gente já sabe...
guerras diarias pra institucionalizar paz interna...
é isso. dar ordem ao caos.
beijo
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