"Eu quero um pacto com a simplicidade. Limpar os desejos ocultos. Eu quero ser analfabeta das miudezas, dos disse-que-disse. Meus bolsos, meus bolsos se desfazem das pedras de uma vida inteira carregadas pro vôo das jóias."

Maísa Picasso

18.5.06

Sentido da Vida



O que de fato ela sabia era que por mais que vivesse, por mais que fosse, a dor estava ali escondida no recôndito duma gruta íngreme. E bastava era mesmo um olhar. Sim, bastava um olhar diferente na rua, algum mais sentido, algum estranho e lá de dentro escoava inassistida, voluptuosa, incansável.


E por vezes parecia fácil, previsível até. Agora, hora do desassossego. Cá a pouco, café com pão. E era já quase como esperada, feito visita tardia, feito chuva de época: certeira. E sem que ninguém esperasse, irrompia aflita, desapontada, irrefletida. Sem hora de chegar, sem motivo aparente, sem menos. Licenças ou pormenores. Dorzinha fina, aguda, constante. Estava nos limites atentos entre o não ser e ser. Que infelicidade, pensava ela, que desse fruta a mangueira fora do tempo. As coisas assim, precisando de certeza, sem exageros, naturalidade. E a mulher com pensamento crepitando feito fogo em lareira acesa, compreendia que há excessos da vida e variáveis sim, feito o dia que choveu tarde inteirinha somente nela, por mais que fingisse, as águas turvas. Que dia tosco, pensou.

Sim, aquela sua dor era como o dia de chuva lixiviando suas dores d’alma, empobrecendo. Então era assim que sua essência cabia, assim que existia? No fundo não era isso, pensava. Como só que existia. Desnuda à força e o que via? Não, não só existia, até agora, recusando-se a ser.

Mas olhando a vida por detrás da janela há o vidro fume, e as curvaturas do olhar, e o próprio mundo lá fora dá mostras de existir com uma cor diferente, acizentada, em solidariedade ao sentimento dela, em compaixão com quem sofre, que quem sofre só vê mesmo é cor desbotada, feito estação de trem de cidadezinha pequena que despede um a um de seus filhos, a espera de um retorno que não vem.

Mai*

Um comentário:

Pablo Carvalho disse...

Amores nos vagões, vagões nos trilhos.
Parece que quem parte é a ferrovia.